A Europa connosco

Caros Camaradas:

É uma honra e além disso uma extraordinária alegria para o Partido Socialista e para mim, pessoalmente, poder hoje acolher-vos no meu País, depois de ganha a batalha da liberdade e uma vez criadas as condições para o funcionamento regular das instituições democráticas em Portugal. Depois de durante tantos anos vos ter encontrado, nos vossos países respectivos, na condição de exilado político, proscrito da minha própria terra, ou de vos ter chamado a atenção, angustiado, para o risco mortal que correu a liberdade, enfim reconquistada em Portugal, durante a dramática prova de força que vivemos no Verão passado, ou mais precisamente entre 11 de Março e 25 de Novembro de 1975.

Convocados pelo nosso grande amigo Willy Brandt, Presidente da Comissão para a Defesa da Democracia em Portugal, criada no quadro da Internacional Socialista, em Junho de 1975, aqui vos encontrais hoje num país com vários problemas, decerto a maior parte deles herdados do passado fascista, mas que marcha agora resolutamente no caminho da estabilização política e que, após o corte cerce com um passado de exploração colonial, que durou cinco séculos, e a vivência terrivelmente difícil de uma descolonização feita com vinte anos de atraso, procura, corajosamente, uma nova identidade nacional – com os olhos postos na Europa a que pertence.

Como sabeis – porque o haveis vivido, e sendo como fostes, connosco solidários em todos os momentos – o processo revolucionário português, apesar das crises, da tremenda complexidade, e de dificuldades de toda a ordem, tem-se desenvolvido – sem violência. Esta moderação efectiva, apesar dos extremismos verbais e das aparências, esta capacidade de bom senso de que deu provas o Povo Português, capaz de parar à beira do abismo, da violência ou da guerra civil, é uma das originalidades de que nos orgulhamos. O nosso Partido contribuiu poderosamente para tal – como partido aberto, tolerante e fraternal que é – e ainda por ser, pela sua equilibrada implantação em todo o território português, continente e ilhas, um partido verdadeiramente nacional, que sempre evitou, pela acção coerente, as divisões esboçadas entre portugueses do norte e do sul, entre portugueses das ilhas atlânticas e do continente.

Aliás o nosso Partido apesar de jovem – oficialmente criado durante a clandestinidade, no Congresso de Bonn, em 1973 – insere-se numa velha tradição socialista portuguesa, que data de há mais de um século, dado que o Partido Socialista Português, Secção Portuguesa da Internacional Operária, foi fundado em 1875. Por isso pôde criar tão rapidamente fundas raízes, e transformar-se, a partir das eleições de Abril de 1975, no maior partido político português, liderando um muito amplo movimento de massas trabalhadoras, que impediu a instauração de uma ditadura comunista em Portugal. Hoje, mais do que nunca, é da vitalidade do nosso Partido, da sua vocação para encarnar um projecto político simultaneamente progressista e nacional, que depende o futuro da esquerda portuguesa.

Como sabem estamos a terminar a elaboração da Constituição, que em princípio deverá ser promulgada até ao fim do corrente mês. Ficará o País então dotado de um instrumento legal que institucionalizará uma democracia aberta às conquistas sociais mais progressistas. Nos termos dessa lei fundamental proceder-se-á a eleições legislativas marcadas para 25 de Abril de 1976, eleições presidenciais, por sufrágio directo e universal, para 27 de Junho de 1976, e, mais tarde, com data ainda não fixada, eleições municipais. As eleições legislativas, de uma importância transcendente, consagrarão as grandes escolhas do eleitorado, por quatro anos.

Perante estas eleições o PS definiu uma orientação sem ambiguidades: apresentar-se-á só, recusando quaisquer alianças, quer com o PCP (partido que não deu até hoje suficientes provas de respeitar as regras democráticas) quer com os partidos da direita – o PPD e o CDS, que visam um regresso ao passado, ao feudalismo económico do passado, embora sob o disfarce de uma democracia autoritária que nem sequer respeitaria a pura forma.

0 Partido Socialista considera que o Povo Português, através de uma expressiva votação, lhe dará as condições para governar sozinho. Mas se assim não acontecer, e os partidos da direita em conjunto vierem a obter a maioria, o Partido Socialista respeitará a escolha e passará à oposição. Em democracia tanto se serve o país no Governo como na Oposição. 0 Partido Socialista, que é um partido essencialmente de trabalhadores e tem uma base operária muito forte, não está disposto a inflectir as suas orientações programáticas e a vir a ter uma prática política centrista para facilitar um jogo oportunista de alianças, a que necessariamente conduziria um novo governo de coligação. Por isso decidimos pôr o eleitorado perante uma opção extremamente simples: ou vota em nós, de forma a podermos governar sozinhos, segundo o nosso próprio programa, assumindo por inteiro a responsabilidade da reconstrução económica nacional e da integração futura de Portugal na Europa – eliminando de vez neste país as largas manchas de miséria, de ignorância e de subdesenvolvimento, – ou passaremos à oposição para aí continuarmos a liderar, coerentemente, as justas reivindicações do mundo do trabalho.

Camaradas:

O meu objectivo porém não é falar-lhes de política interna portuguesa. O tema desta reunião é muito mais vasto: versa a Europa e Portugal ou, no que mais especialmente nos respeita, Portugal no actual contexto europeu.

Permitam-me pois que aborde, sem outros desenvolvimentos marginais, esse ponto.

Repensar a Europa e o seu futuro é obra de todos os europeus, povos e nações, incluindo aqueles que só marginalmente têm participado no processo da construção europeia verdadeiramente iniciada após o termo da segunda guerra mundial.

A Europa já não é a mera expressão geográfica de um continente. A Europa, hoje, é uma ideia em permanente evolução, dotada duma dinâmica capaz de transcender certos particularismos nacionais e de se situar na descoberta e na definição das aspirações comuns a todos os povos europeus. Mais do que nunca, um europeu sente-se hoje, e para além da sua própria nacionalidade, indissoluvelmente ligado a um conceito alargado e dinâmico da Europa. A Europa, tal como a procuramos encarar, já existe, já deixou o domínio das meras intenções para se alicerçar em estruturas que procuram concretizar eficazmente a necessidade dos povos europeus de agirem em função de uma solidariedade profundamente enraizada em interesses comuns.

Este conceito dinâmico da Europa exige que ele seja constantemente repensado. Construir a Europa não é tarefa fácil. Muitos obstáculos vão surgindo pelo caminho e alguns deles nascem de tradições ligadas à vida colectiva de cada povo. Repensar a Europa e o seu futuro é assim um dever permanente que deve ser assumido com humildade face à importância histórica dos objectivos e que deve ser obra de todos os europeus.

Portugal é também a Europa na medida em que a sua pertença ao continente transcende a mera expressão geográfica e antes encontra as suas razões mais válidas na integração do ambiente cultural e na evolução ideológica que caracteriza a Europa. Somos europeus, sentimo-nos europeus e queremos, nós portugueses, que o nosso país faça finalmente ouvir a sua voz e participe activamente na construção da Europa. O novo Portugal está profundamente empenhado na transformação da sociedade portuguesa em bases democráticas e socialistas. Repensar Portugal e o seu futuro passa pelo repensar da Europa em que Portugal se quer vir a integrar.

Posso assegurar-vos que sempre que Portugal se fechou à Europa se fechou também ao mundo, o que correspondeu a épocas de crise da sociedade portuguesa como aquela que findou em 25 de Abril de 1974.

Nos períodos mais brilhantes da sua história Portugal abriu-se ao mundo afirmando-se como autêntico representante da cultura e da civilização europeias, pioneiro que foi do encontro de civilizações do Ocidente e do Oriente. Portugal levou ao mundo o melhor da cultura, da ciência e da técnica da Europa e a novidade das artes europeias através dos seus navegadores humanistas e homens de ciência que se formaram nas grandes universidades da época. As fases de isolamento face à Europa corresponderam sempre em Portugal a um empobrecimento cultural e técnico, a decadência de estruturas sociais e um marcado depauperamento ideológico.

No anterior regime os ideólogos oficiais condicionaram a opinião pública pela asserção de que a viabilidade de Portugal como País independente dependia da defesa «à outrance» do Ultramar. Foi afastada assim toda e qualquer sugestão ou tentativa reformista (considerada então como subversiva e punida como tal) que levasse à descolonização e encaminhasse sem sobressaltos os povos coloniais para a independência, assegurando-se do mesmo passo, a colaboração de grande número de portugueses na construção dos novos Estados. A cegueira dos governantes de então e a impossibilidade das classes dominantes de compreenderem o fenómeno da emancipação dos povos coloniais provocaram dramas incontestáveis, atrasaram o desenvolvimento económico social do povo português e explicam em grande parte o radicalismo dos novos leaders africanos dos países de expressão portuguesa. A história julgará os verdadeiros responsáveis dos dramas ocasionados por uma colonização levada até ao limite dos recursos morais e materiais de um povo.

Os ideólogos do anterior regime afirmavam também como verdade absoluta a inconveniência de todo e qualquer envolvimento directo de Portugal nas questões europeias, valorizando a «necessidade de procurar fora e além da Europa os pontos de apoio que não puderam encontrar no continente», explorando a tradicional rivalidade com Castela, o perigo hegemónico da Espanha que justificaria uma permanente reserva histórica, não obstante o Pacto Ibérico, que mais não era do que a identificação ideológica das ditaduras de Franco e Salazar.

Hoje como ontem a problemática da inserção de Portugal no mundo continua a ser em geral apresentada em termos dicotómicos – Portugal País europeu ou Portugal virado para o Ultramar e agora para o Terceiro Mundo.

Começam contudo a aparecer algumas vozes que procuram conciliar as duas orientações, realçando a nossa pertença cultural e civilizacional à Europa, valorizando os imperativos de ordem geopolítica e económica num entendimento saudável da necessidade de salvaguardar a independência nacional, para daí partir num caminho realista de projecção de Portugal em países que nos habituámos a considerar como fazendo parte do chamado Terceiro Mundo.

0 Partido Socialista orgulha-se de ser o pioneiro desta orientação de realismo político. Na verdade estamos conscientes de que a sua obra para o socialismo em Portugal não poderá fazer-se abstraindo do enquadramento europeu uma vez que afastamos os modelos de socialismo de cariz terceiro mundista ou totalitário.

A minha presença em Estrasburgo no Conselho da Europa em Abril de 1970, na qualidade de opositor da ditadura portuguesa, foi uma das razões que me valeu o exílio. Não estou arrependido. Pude voltar a Estrasburgo em Setembro de 1974 na qualidade de Ministro dos Negócios Estrangeiros e estabelecer as primeiras relações formais de Portugal com o Conselho da Europa tendo daí já resultado várias formas de cooperação, a última das quais foi a assinatura da Convenção Cultural Europeia por parte do meu país. Coube-me igualmente a honra de iniciar os contactos com a Comunidade Económica Europeia após o 25 de Abril, tanto em Bruxelas como directamente junto da maioria dos países membros da CEE e igualmente junto dos Governos da EFTA. Em todos esses contactos me esforcei por servir o meu País, com o propósito de dar à Europa e ao Mundo a imagem de Portugal renovado, mas, por outro lado, procurando o apoio europeu para a transformação da sociedade portuguesa.

O Partido Socialista nesta luta sem tréguas pôde contar com a vossa compreensão e ajuda militante, às quais desejo render homenagem em nome – estou certo disso – da grande maioria do Povo Português.

Repensar convosco o futuro da Europa e a inserção de Portugal no processo da construção europeia é tarefa altamente estimulante e enriquecedora para os camaradas portugueses e para mim, pessoalmente. O Partido Socialista teve ocasião, em diversas oportunidades, de afirmar a necessidade de transformar a Europa – de forma a que deixe de ser a Europa dos trusts e passe a ser a Europa dos trabalhadores. Hoje esta tomada de posição de princípio tem urgência em ser reafirmada, na medida em que certas forças políticas em Portugal se encaminham para defender a aproximação de Portugal às Comunidades Europeias numa perspectiva puramente capitalista que não corresponde aos verdadeiros interesses do povo português e se afasta dos imperativos de uma verdadeira independência nacional condicionando a transformação da sociedade portuguesa a caminho do socialismo. Não é por acaso que alguns dos actuais leaders dessas formações políticas defenderem já, nomeadamente no Parlamento de Marcelo Caetano, uma aproximação à Europa na defesa e no prosseguimento dos interesses de um capitalismo considerado moderno.

Haverá certamente necessidade de aprofundar o estudo da posição de Portugal perante a Comunidade Europeia, em todas as suas implicações políticas, económicas e sociais, tanto mais que se aproxima – como vos disse – a normalização das estruturas representativas da jovem democracia portuguesa.

A solução a que se deve chegar deverá ser a expressão da vontade do povo português, admitindo a própria opção de Portugal vir a ser membro de pleno direito da Comunidade Europeia desde que se considere que tal opção corresponde aos verdadeiros interesses nacionais e no entendimento de que Portugal poderá dar igualmente uma contribuição positiva para a transformação da CEE com a maior participação política dos trabalhadores.

Aliás o exemplo da maioria dos partidos socialistas, sociais-democratas (e até comunistas) que participam já nas instituições europeias, nomeadamente no Parlamento Europeu, que passará num futuro próximo a ser eleito por sufrágio universal.

Impõe-se assim a necessidade de Portugal acompanhar com atenção reforçada a dinâmica da construção europeia não obstante as crises de crescimento interno ou as crises provocadas por factores de ordem. externa.

Um facto novo surge com interesse directo para a posição de Portugal perante a Europa. Trata-se do pedido de adesão da Grécia já sancionado pelo Conselho da Europa por decisão política recusando o «approach» dos tecnocratas da Comissão de Bruxelas que advogam a tese do «pre-membership». Por outro lado Portugal não pode desconhecer a ofensiva da diplomacia espanhola com vista à futura entrada do seu país na Comunidade Europeia cuja viabilidade dependerá previamente, como é de toda a evidência, da instauração das liberdades democráticas em Espanha.

0 fascismo português não obstante a desconfiança tradicional em relação à cooperação europeia viu-se forçado a acompanhar, se bem que marginalmente, a maioria das iniciativas levadas a cabo no Mundo Ocidental após a II Guerra Mundial, participando como membro no Pacto do Atlântico na OCDE e na EFTA nomeadamente. Desta forma pretendia fazer esquecer as cumplicidades do regime em relação à Alemanha nazi e à Itália fascista, valorizando a política chamada de neutralidade colaborante com vista a evitar o isolamento político e diplomático do País. Esta orientação viria a ser mantida como uma constante quando se avolumaram as reservas do Ocidente em relação à política colonial do regime, procurando valorizar a situação geoestratégica não só das Ilhas do Atlântico como das colónias africanas e afirmando-se o governo português de então, hipocritamente, como lídimo representante dos valores culturais e políticos do ocidente.

Sob o ponto de vista económico o anterior regime viu-se obrigado a procurar manter o acesso aos mercados tradicionais da Europa, nomeadamente ao britânico, procurando formas de ligação à EFTA liderada pelo Reino Unido, e posteriormente à CEE, ultrapassada que foi a reserva gaulista à entrada daquele país como membro da CEE. Aliás a própria evolução da estrutura económica do País, a caminho da industrialização, impunha que Portugal seguisse a via da exportação para superar a estreiteza do espaço geoeconómico nacional (população reduzida, baixo nível de vida, desequilibrada repartição de rendimentos, etc.), mesmo considerando o mercado das colónias cuja extensão territorial não correspondia a uma verdadeira dimensão económica dado o seu fraco nível de desenvolvimento, além da impossibilidade da indústria portuguesa de dar satisfação à necessidade de bens de equipamento. Portugal limitava-se a exportar para as colónias produtos tradicionais, nomeadamente vinhos, têxteis e artigos de indústria metalo-mecânica ligeira.

0 Governo português de então procurou superar a contradição que advinha da necessidade imperiosa de reforçar a industrialização do País protegendo-a da concorrência internacional sem deixar de acompanhar ou de participar no progresso de integração europeia, a fim de não perder os seus mercados tradicionais e potenciais. Além destas limitações estava sempre presente o ónus político que advinha do carácter ditatorial e anti-democrático do regime e da política colonial que prosseguia embaraçando cada vez mais os seus aliados na NATO e os seus parceiros comerciais na EFTA. Apesar disso acabou por conseguir obter um esquema de participação favorável na EFTA, que teve em conta o fraco desenvolvimento da economia nacional e que permitiu a expansão de certas indústrias nomeadamente à têxtil. Essa participação veio ainda facilitar a negociação com a Comunidade Europeia alargada, evitando-se a criação de novas barreiras ao comércio inter-europeu o que implicava a negociação, numa perspectiva global, de arranjos destinados a evitar a reintrodução de obstáculos ao comércio entre os países da EFTA que pretendiam aderir às comunidades e os seus antigos parceiros que continuavam naquela associação .Portugal pôde assim negociar no quadro EFTA e conseguir uma ligação às comunidades europeias que não teria jamais obtido se tivesse negociado isoladamente, mesmo que o acordo existente assuma um carácter meramente comercial.

Os acordos assinados em 1972 entre Portugal e a CEE foram apresentados ao País como uma grande vitória diplomática da «soi disante» política de abertura de Marcelo Caetano, mas alguns consideraram-nos como um «contrato leonino» a favor evidentemente da Comunidade Europeia, fazendo lembrar a história do pote de barro ao lado do pote de ferro, em suma, uma ligação que iria acentuar as dependências tradicionais em relação ao capitalismo ocidental. Para alguns o acordo representava um desafio à capacidade de realização dos portugueses numa perspectiva de futuro do desenvolvimento económico nacional, exigindo uma actuação dinâmica da administração pública e do sector privado nacional através do aproveitamento de um mercado cuja dimensão atinge cerca de 300 milhões de consumidores. A aproximação com o Mercado Comum constituiu uma esperança para aqueles que pensavam que traria em si os germens da queda do regime e provocaria a restauração das liberdades democráticas e o termo da guerra colonial. Alguns mesmo pensavam que o processo de descolonização podia ser enquadrado com vantagem numa perspectiva euro africana, processando-se paralelamente à aproximação de Portugal com a Europa a integração das colónias portuguesas no esquema de associação das convenções de Iaundé.

0 condicionalismo é hoje bem diferente, uma vez restauradas as liberdades democráticas e completado o processo de descolonização, com resultados nem sempre felizes – há que reconhecer – tanto para o povo português como para os povos das ex-colónias. Impõe-se honrar os compromissos assumidos, procurando retirar as maiores vantagens possíveis dos acordos existentes com a CEE, numa perspectiva dinâmica de aproximação, cada vez mais íntima de Portugal à Europa e na consciência dos verdadeiros interesses do Povo Português. Convém contudo realçar as limitações dos acordos firmados pelo anterior regime e que levam à instituição progressiva de uma zona de trocas livres para produtos industriais entre Portugal e a CEE. A regra geral de desarmamento pautal termina dentro de pouco mais de um ano, mais precisamente no dia 1 de Julho de 1977, admitindo-se contudo excepções com vista à protecção de certos produtos industriais de origem portuguesa que apontam para datas próximas, 1980 em alguns casos e 1985 noutros. 0 aproveitamento da cláusula de indústrias novas apresenta-se de viabilidade limitada e de alcance precário. As restrições existentes à exportação portuguesa para a comunidade de têxteis, vestuários e pasta de papel e produtos manufacturados de cortiça constituem ónus gravoso para a economia nacional e para o seu desenvolvimento. As concessões no campo agrícola são de limitado alcance no que diz respeito aos produtos considerados e à extensão de facilidades. Finalmente, o carácter evolutivo do acordo que admite a extensão da cooperação a outros domínios dependente exclusivamente da boa vontade da comunidade, o que reduz a margem de iniciativa de Portugal.

Nas negociações em curso com vista ao melhoramento dos acordos celebrados com a CEE deslocaram-se a Portugal muitos responsáveis europeus e mais recentemente o Presidente da Comissão Europeia – com o qual me encontrei e tive uma conversa muito franca tendo-se já obtido resultados positivos entre os quais me permito realçar a anunciada assistência financeira de emergência por parte da CEE e da EFTA no valor total de cerca de trezentos milhões de dólares. Mas haverá que estabelecer uma estratégia global com vista à aproximação de Portugal à Europa aproveitando-se a vontade política tantas vezes afirmada do lado europeu. Por parte de Portugal e dos portugueses deverá ser levada a cabo uma profunda reflexão sobre as implicações da opção europeia, incluindo a própria adesão à CEE. É matéria que a próxima Assembleia da República decidirá. Entretanto as negociações em curso devem prosseguir da melhor forma. Incumbe à Europa dar prova da sua vontade política de continuar a ajudar o processo de consolidação da jovem democracia portuguesa. Como estou entre camaradas, todos amigos de Portugal, permito-me descer ao concreto e realçar alguns aspectos considerados essenciais da negociação em curso e que afectam de modo substancial todos os portugueses, muito especialmente as gentes do norte do País onde hoje nos encontramos.

1 – Grande número de unidades industriais têxteis e de confecções localizam-se no norte de Portugal atravessando hoje estas industrias uma profunda crise estrutural e conjuntural que só pode ter solução satisfatória através do aumento da produtividade e do reforço das exportações. Tanto na EFTA como na CEE as nossas exportações estão hoje a ser objecto de sérias restrições através da imposição de sistemas de auto-limitações e do esquema de plafonds na CEE para certos produtos considerados sensíveis, provocando profundos desequilíbrios de excepcional gravidade numa indústria que emprega a maior força de trabalho do País, cerca de trezentos mil trabalhadores.

2. – No sector do papel e pasta de papel verificam-se igualmente restrições à exportação portuguesa não tendo ainda as pretensões nacionais encontrado satisfação junto das instâncias comunitárias nomeadamente quanto ao aumento de contingentes em especial para o mercado britânico.

3. – Em virtude da grave crise que atravessa a economia portuguesa justificar-se-ia alargar no tempo os calendários de desarmamento pautal estabelecidos nos acordos com a CEE ao mesmo tempo que se acelerariam as reduções de direitos para os produtos portugueses no mercado comunitário. As pretensões portuguesas já expostas à Comunidade são mais modestas do que uma renegociação global dos calendários de desarmamento. Pretende-se simplesmente prolongar a protecção para alguns produtos transferindo-os para listas mais favoráveis, o que estamos convencidos virá a merecer a compreensão e a concordância das instâncias competentes da CEE. 0 mesmo se diga quanto ao pedido português de fazer beneficiar algumas indústrias já existentes da cláusula das indústrias novas (a fim) de minorar graves dificuldades em certos sectores industriais.

4. – Como já referimos as facilidades concedidas a Portugal no sector agrícola foram escassas e de alcance limitado pelo que se impõe uma revisão profunda da posição da CEE a este respeito. Portugal encontra muito concretamente enormes dificuldades no escoamento da sua produção vinícola. Trata-se dum problema geral mas que afecta muito particularmente o norte do País, produtor de grande variedade de vinhos verdes de tão característico paladar, além do famoso «vinho fino» que geralmente se conhece pelo nome da cidade do Porto.

0 tratamento de favor dado pela Comunidade aos vinhos portugueses limita-se aos vinhos de qualidade – Porto, Madeira e Moscatel de Setúbal. Os vinhos de mesa não foram considerados no acordo com a CEE, contrariamente ao que acontece com vinhos de outras origens, nomeadamente da Espanha, Grécia, Turquia e Países do Magreb. Esta situação é profundamente injusta, tanto mais que, graças ao regime proteccionista da CEE, Portugal está a perder importantes posições adquiridas ao longo dos anos nos mercados britânico e dinamarquês. 0 tratamento dado aos vinhos de qualidade, Porto e Madeira (a exportação do Moscatel de Setúbal tem pouco significado) quanto a contingentes e reduções tarifárias ficou aquém das expectativas portuguesas tanto mais que estes vinhos não têm verdadeiros similares nos países membros produtores. Os contingentes de maior significado são ainda oferecidos para vinhos a granel, sujeição que lembra os velhos tempos do imperialismo económico: tal concessão contraria a política de qualidade prosseguida pelos departamentos competentes portugueses através do controle na origem e da exportação em garrafa sob selo de garantia. 0 mercado europeu é de importância decisiva para a produção portuguesa de vinho do Porto absorvendo cerca de noventa por cento do total exportado pelo que se impõe uma alteração substancial da política comunitária a este respeito.

5 – Outro sector considerado agrícola na nomenclatura comunitária e como tal objecto de tratamento desfavorável para os interesses português diz respeito às conservas de peixe nomeadamente da sardinha, de importância decisiva na exportação portuguesa. 0 acesso ao mercado comunitário destes produtos está fortemente condicionado afectando a vida de muitos portugueses nomeadamente do norte do País e do extremo sul.

0 mesmo acontece com os concentrados de tomate cuja exportação para a Comunidade se encontra igualmente condicionada.

6 – A resposta da Comunidade Europeia e da EFTA aos pedidos de assistência financeira foram devidamente apreciados pelo povo português através da concessão da ajuda especial de urgência e da criação pela EFTA do Fundo de Desenvolvimento Industrial. Tive oportunidade de eu próprio, investido em funções oficiais ou como responsável do Partido Socialista, explicar aos governantes europeus a necessidade premente de prestar assistência financeira à jovem democracia portuguesa a fim de consolidar as liberdades conquistadas superando-se os perigos que a ameaçaram e que ainda não desapareceram completamente. Não posso deixar de me congratular pela assinatura num futuro do Protocolo Financeiro entre a CEE e Portugal no quadro do qual se vai processar e, espero, reforçar a assistência financeira a Portugal. Não posso esquecer a ajuda bilateral recebida de vários países que corresponderam aos nossos pedidos graças à solidariedade militante de muitos de vós aqui presentes. Deste modo Portugal poderá empreender a reconstrução do País no campo social e económico ao mesmo tempo que consolida a democracia a caminho do socialismo, e se poderá transformar numa zona de estabilidade política no Ocidente Sul da Europa.

Camaradas:

A vossa presença no Norte de Portugal para conjuntamente repensar connosco a posição de Portugal perante a Europa deverá ser por vós aproveitada para auscultar os sentimentos de identificação europeia de populações que pela história, por tradição e por experiência humana mais perto se sentem da Europa. Rara será hoje a família nortenha sem um membro seu radicado na Europa. Se Portugal foi o País que proporcionalmente mais contribuiu nos tempos modernos para o fluxo emigratório para a Europa, mais de um milhão de trabalhadores o que corresponde a um terço da população activa nacional, do norte do País saiu sem dúvida o maior número. Rendo homenagem a essa gente, em geral humilde mas de grande tenacidade e audácia, com quem tive oportunidade de confraternizar e de me identificar durante o meu exílio em França. Os emigrantes foram e são os grandes interpretes de verdadeira aproximação de Portugal à Europa pela sua experiência humana na luta contra todos os entraves da administração fascista, saltando clandestinamente fronteiras em busca de um futuro melhor, ao mesmo tempo que contribuíam para a prosperidade europeia, o mesmo será dizer para a construção da Europa, com o seu trabalho árduo em tarefas as mais das vezes humildes que os nacionais desses países se recusam a desempenhar. Daí a importância que damos a que a futura Europa seja a Europa dos trabalhadores. 0 regime fascista acabou por fechar os olhos a esse êxodo extraordinário de trabalhadores, em geral na força da vida, que no seu País não encontravam satisfação para um dos mais sagrados direitos, mascarando-se assim a incapacidade do sistema para dar trabalho a todos os portugueses, aliviando-se tensões no mercado do trabalho e apresentando-se demagogicamente falsas estatísticas de pleno emprego ao mesmo tempo eram aproveitadas de maneira ignóbil as poupanças dos emigrantes, não para criar riqueza, mas para preservar um regime ditatorial, dar satisfação às classes dominantes que o apoiavam e principalmente para prosseguir uma guerra injusta contra os povos coloniais. Chegou a hora de, sem demagogias, render justiça aos emigrantes portugueses que na Europa e no Mundo dignificam o nome de Portugal e com o seu trabalho honesto contribuem para a paz, o progresso e a prosperidade dos países que os acolheram. Por parte dos países europeus é da mais elementar justiça conceder-lhes completa equiparação no domínio do trabalho e da segurança social com os seus nacionais, aliás, no prosseguimento dos pedidos insistentemente apresentados às organizações europeias pelo Governo Português.

Não obstante a crise económica internacional que gera desemprego generalizado, haverá, que aliviar as interdições à entrada de novos emigrantes portugueses nos países europeus, facilitando a resolução da dramática situação de emprego que hoje se vive em Portugal, substancialmente agravada com o regresso maciço de portugueses radicados nas colónias. Alguns países europeus estão particularmente sensibilizados para compreender esta dramática situação, refiro-me muito especialmente à França que soube proceder com humanidade e sabedoria à reintegração de mais de um milhão de franceses retornados das suas ex-colónias e principalmente da Argélia, à Bélgica e à Holanda. A assistência oferecida por parte de muitos países, principalmente europeus, aquando das operações de retorno dos portugueses de Angola, através do oferecimento de meios de transporte e de ofertas que se cifraram em outras formas de auxílio para minorar a sorte de tantos portugueses, foi acolhida com um sentimento de gratidão profunda pelo nosso Povo, mas ainda não é tudo. A reintegração na comunidade nacional de centenas de milhares de portugueses é obra de gigantes e exige meios financeiros e outros recursos de que Portugal não dispõe. O Povo Português continua a contar com o apoio desinteressado da Europa que vós hoje representais aqui. A solidariedade humana não pode ser uma palavra vã.

Na problemática da inserção de Portugal na Europa e no Mundo levanta-se com especial acuidade a questão das relações de Portugal com os novos países que até há pouco estiveram sob a dominação colonial portuguesa. A preocupação geral não poderá deixar de ser no sentido de privilegiar as relações com países a quem nos ligam tantos laços de carácter histórico, cultural, humano e económico. Para o prosseguimento deste objectivo haverá que superar o trauma histórico que afectou a essência dos sentimentos do povo português, sentimentos permanentemente vivos enquanto não se processar a reintegração total na sociedade nacional de centenas de milhares de portugueses que até há bem pouco tempo estavam radicados nas ex-colónias.

Por parte dos novos países impõe-se que os sentimentos de ressentimentos contra o ex-colonizador sejam ultrapassados e que o radicalismo pós-independência dos novos dirigentes seja superado num processo gradual de tomada de consciência dos verdadeiros interesses dos povos que governam. A mais curto prazo muito conviria tentar prosseguir numa política de realismo baseado no melhor entendimento possível dos interesses recíprocos com vista à resolução do contencioso herdado do período colonial e ao estabelecimento das bases de cooperação possível.

0 desbloqueamento da sociedade portuguesa ante 25 de Abril tendo como um dos objectivos prioritários a alteração da política colonial e a aceitação dos princípios da auto-determinação e da independência dos povos poderia ter sido levado a cabo no quadro euro africano, estabelecendo-se um paralelismo que levasse a uma aproximação cada vez mais íntima de Portugal com a Comunidade Europeia, lado a lado com a associação dos novos países africanos de expressão portuguesa aos novos esquemas de associação entre a quase totalidade dos países africanos e a CEE, de que resultou a assinatura da Convenção de Laomé ultrapassando o sentido neo-colonial das Convenções de laundé I e II.

0 sistema das relações de Portugal com as ex-colónias terminado que foi o processo de descolonização, insere-se assim numa questão mais ampla que diz respeito à nossa posição perante a Europa e o Mundo, à inserção dos países agora independentes no contexto continental africano, contemplando as suas ligações naturais com a Europa.

Nestes quase dois anos, em que vivemos algumas aventuras demagógicas e sobretudo um ambiente de acentuado ideologismo, foram-se perdendo algumas oportunidades. Tive ocasião de encarecer a especial posição de «Portugal na encruzilhada de todos os povos do Mundo, país europeu com tantos e tão velhos laços com a África», no meu discurso perante a Assembleia Geral das Nações Unidas, em Outubro de 1974. 0 processo de descolonização portuguesa merecia então crédito político universal dando jus ao reconhecimento da posição privilegiada de Portugal em relação à África. No contexto euro africano haveria que ter valorizado, com realismo e eficácia, a nossa especial posição, no interesse recíproco do povo português e dos povos das ex-colónias, assegurando o concurso e o apoio da Europa e da África ao processo de descolonização em curso, evitando-se intervenções de imperialismos veiculados pelas super-potências.

Portugal mantém com a CEE laços de natureza puramente económica e agora, a título excepcional, de carácter financeiro e social, sendo considerado um país terceiro» apesar de se lhe reconhecer vocação à adesão futura ao tratado de Roma.

A Convenção de Laomé estabelece regimes comerciais, de assistência técnica, económica e financeira e formas de cooperação tecnológica extremamente favoráveis aos países africanos membros, nos quais já se contam alguns Estados de expressão portuguesa. Assim, Portugal poderá vir a ser o grande ausente nestes esquemas de cooperação euro africana, se não se acelerar o processo da sua integração como membro de pleno direito, na Comunidade Europeia. Se assim não vier a acontecer, Portugal será igualmente considerado «um país terceiro», assistindo passivamente ao estabelecimento de relações privilegiadas, no quadro da Convenção de Laomé, entre a Europa e as suas antigas colónias. Neste contexto, ainda, radica uma das razões fundamentais que obriga o Povo Português a uma reflexão profunda relativamente à integração de Portugal na Europa, aliás, no prosseguimento do seu destino histórico de país europeu com especiais qualificações para se apresentar como «intermediário privilegiado» nas relações da Europa com a África. Não há pois antagonismo entre a vocação africana ou se quiserem terceiro mundista de Portugal e o estreitamento de relações entre Portugal e a Europa, mas antes, e como sempre disse, complementaridade.

Camaradas:

Absorvidos pelos nossos próprios problemas de reestruturação nacional, empenhados numa revolução que concilie o socialismo e a liberdade – sem deixarmos que se sacrifique a liberdade ao socialismo, mas também sem abdicarmos jamais dos nossos ideais socialistas – o Partido Socialista não tem tido ocasião de exercer na cena internacional, e especialmente no quadro da Internacional Socialista, aquele papel, discreto mas eficaz, a que legitimamente aspira. Socialistas do sul da Europa, mas sendo um grande partido de massas que soube reduzir às suas proporções o aventureirismo do partido comunista local, o PS, até pela sua influência nos meios sindicais, encontra-se em posição, em alguns aspectos, próximo de certos partidos sociais-democratas do norte da Europa.

A nossa experiência, que não deu tempo ainda a grandes elaborações teóricas, é contudo rica de ensinamentos. A nossa luta – temos disso consciência – representa decerto uma contribuição original para o desbloqueamento de um verdadeiro projecto de socialismo democrático para a Europa. Sobre ele reflectiremos em comum. Com a fraternidade de camaradas que por vias diferentes e face a condicionalismos nacionais muito diversos, procuram atingir o mesmo objectivo – o socialismo – ou seja a igualdade e a felicidade dos homens na liberdade, na fraternidade e na paz.